sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

TODOS OS GATOS SÃO PARDOS?


 

A caça aos votos, orientada por especialistas em mercadologia política, aboliu, na prática, a necessidade de que os partidos e os candidatos tenham, cada qual, uma feição própria, uma proposta clara que implique compromissos claros. As pesquisas tratam de identificar o que é que o povo quer ouvir, indicando ao postulante o que é que ele deve falar. Assim, as promessas de campanha acabam sendo todas iguais. Pequenas diferenças não impedem até mesmo que um candidato acuse o outro de ter roubado suas ideias.

É simbólico o fato de que, nos debates televisivos, todos os candidatos se apresentem com indumentária semelhante, supostamente a que impressionaria de forma mais positiva o eleitorado: o terno escuro, com uma gravata colorida discreta; o conjuntinho de saia e blusa à executiva. Todos e todas iguais.

Ao final, a mesmice é tamanha que o eleitor acaba criando critérios nada a ver para decidir seu voto.

Um deles é a probabilidade de vitória. Nesse contexto, a propaganda explora o sentimento popular mais primitivo, que é o de não querer perder. A derrota do seu escolhido configuraria para o eleitor uma derrota sua, por um processo identificatório induzido sutilmente pela mídia, que vincula o sufrágio à ideologia do sucesso como padrão de realização da vida. Daí a importância decisiva das pesquisas de intenção de voto e das manipulações a que estão sujeitas.

Outro lamentável desdobramento da homogeneização programática é a escolha por critérios de aparência pessoal. O político "bonitão" tem mais chance que o feioso. A juventude conta, numa certa medida, de tal forma que as fotos dos santinhos e cartazes sempre mostram o candidato numa idade anterior à atual. O bem falante, treinado em oratória, tem mais chance de ganhar votos do que aquele que tem um discurso pouco fluente ou uma dicção grosseira.

A exploração de critérios que nada tem a ver com a linha de atuação política adotada pelos candidatos chega a ser odiosa. Expõem-se particularidades da vida pessoal, tais como sexualidade, relações amorosas, afiliação étnica, enfermidades, problemas financeiros, coisas que sequer sinalizam uma linha ética ou, menos ainda, condições para o exercício do cargo pretendido. O que se utiliza como recurso para captação de votos e o preconceito, devidamente estimulado. Deseduca. Engana.

Um fenômeno recente é o empalidecimento da linha que demarcaria posições de esquerda e direita. Numa perspectiva tradicional, a diferença entre elas poderia ser relevante para a definição do voto, uma vez que a direita propõe melhorias dentro da ordem social vigente, sem mexer nas estruturas, apenas buscando maior eficiência na gestão do estado, enquanto que a esquerda propugna por mudanças estruturais, defendendo a ideia de que uma ordem social perversa preserva e multiplica as injustiças. Sob esse prisma, a direita seria "conservadora", enquanto que a esquerda seria "progressista".

Essa bipolaridade não corresponde à realidade, na medida em que a multiplicidade de pensamentos políticos não poderia receber esse enquadramento de forma estrita. Por outro lado, nem seria conveniente estimular a abordagem maniqueísta, que atribui à posição preferida o caráter de "bem", enquanto que a oposta configuraria o "mal". Houve uma tentativa dessa ordem, ditada pela mente estreita do militarismo que dominou o país após o golpe de 1964, que instituiu o bipartidarismo, situação e oposição. Não foi possível acomodar todas as correntes dentro do mesmo caldeirão, o que levou ao remendo das sublegendas, três partidos dentro de cada partido. Essa camisa de força apenas serviu para o controle temporário do processo político que, ao final, acabou transbordando, abrindo caminho para o multipartidarismo relativo, atual.

O ideal seria, mesmo, que o debate político revelasse a multipolaridade, com todas as nuanças das diferentes propostas políticas. O sistema que temos no presente não permite isso, favorecendo a indiferenciação e, como conseqüência, o surgimento das chamadas legendas de aluguel, meras fachadas jurídicas para viabilizar interesses nem sempre confessáveis.

Dentro desse quadro, o processo eleitoral assume características de verdadeiro estelionato, arrancando da comunidade uma procuração com plenos poderes, para gerir os interesses coletivos, com base em artimanhas enganosas.

 

MULTIPARTIDARISMO IRRESTRITO


 


 

    Uma das falácias do sistema político brasileiro atual é o conjunto de regras para a criação de partidos políticos com direito a participação no jogo eleitoral.

    A mídia ecoa os intentos de restringir o número de legendas, sob o argumento de que somente aqueles conglomerados que provem representatividade devem ser considerados: democracia, pero no mucho. O desdém com que são tratados os candidatos dos partidos nanicos, nos debates via rádio e televisão, escancaram esse tipo de preconceito. Mais até: quando um candidato com maiores chances não quer aparecer fazendo jogo sujo, faz acordo com um sem chance para que se encarregue da tarefa – evidentemente, com algum tipo de recompensa secreta.

    Os privilégios auto-atribuidos pelos legisladores atuais, dentro da lógica de que quem teve mais votos na última eleição deve ter mais espaço para divulgar suas pretensões, não apenas favorecem os que já estão para que continuem, como são os principais responsáveis pela aberração das legendas de aluguel. Ou seja: os agrupamentos políticos que tem propostas alternativas mais fundamentadas entram numa luta desigual, sem chances de serem ouvidos e escolhidos. Os pequenos que não tem esse tipo de compromisso podem ser cooptados pelos grandes, em troca de oportunidades, o que implica ser vantajoso criar um partido desses para integrar coligações, participar do botim em caso de vitória do grande por ele apoiado e, quem sabe, até fundir-se futuramente.

    A fundação de partidos deve tornar-se a mais livre possível. A quantidade fará, com o tempo, a qualidade. Nenhum tipo de restrição deve ser imposto, nenhuma cláusula de barreira. A abolição dos debates no rádio e na televisão evitará o problema que hoje azucrina os dirigentes partidários e midiáticos, de como organizar certames com tantos candidatos, oferecendo a todos igualdade de condições. A busca de votos terá que ser feita no corpo a corpo, no contato direto com os eleitores, sem os recursos mistificadores dos programas gratuitos e do jornalismo tendencioso.

    Por outro lado, deve ser permitida a candidatura avulsa, para abrigar as pretensões daqueles que não tem compromissos ideológicos com nenhuma das correntes que se expressam nos partidos organizados e que são, hoje, aqueles que mudam de partido ao sabor das conveniências conjunturais. Como eles representam, de alguma forma, segmentos populacionais, devem ter a oportunidade de postular os cargos eletivos, em igualdade de condições com os demais concorrentes.

    Para efeito do cálculo de proporcionalidade, o conjunto dos "sem partido" seria considerado uma legenda ad hoc. Os eleitos estariam liberados para estabelecer alianças com quem quisessem, sem os compromissos que vinculam automaticamente a suas respectivas legendas os que conseguiram cadeiras através de partidos.

    Qual seria, nesse caso, a vantagem de concorrer por um partido? Seria a força de uma proposta que já parte com adesões, apoios e militância. Seria o respaldo de uma coletividade que tem ideias afins, na qual se incluem os candidatos partidários não eleitos. Seria a potência da legitimidade na organização das forças políticas, com maior cacife nas negociações e nas composições indispensáveis para a viabilização de propostas e para o exercício do poder. O "independente" tem maior mobilidade, mas também menor poder de fogo.

    É importante salientar que a pulverização dos votos partidários modifica substancialmente os cálculos de quociente eleitoral, nas eleições proporcionais, desconcentrando o voto dos grandes partidos e abrindo, portanto, maiores chances para os pequenos. Isso garantiria um perfil mais representativo da vontade popular, esvaziando em parte o poder de manobra dos donos dos partidos que tradicionalmente se alternam no poder.

domingo, 4 de janeiro de 2009

QUANTOS VEREADORES DEVEM COMPOR UMA CÂMARA?

O tema parece mais uma intriga da corte, pouca gente se interessa por ele, apesar de a imprensa noticiar, com detalhes e furos de reportagem, a contenda entre o Senado e a Câmara dos Deputados, em torno de uma emenda constitucional que criaria alguns milhares de novos cargos de vereador, ampliando a composição de um punhado de câmaras municipais.
O descaso em relação às notícias veicula uma mensagem do povo: isso é coisa deles, lá em cima, não temos nada que ver com isso.
E para variar, o povo tem razão. As duas correntes que se enfrentam, nesse caso, defendem, no fundo, no fundo, a mesma tese: a democracia representativa implica, na visão deles, necessariamente, o estabelecimento de uma casta privilegiada, a dos “representantes”, aos quais se atribuem privilégios de monta, bancados pelos impostos extorquidos à população (já se provou e comprovou que quem paga impostos, mesmo, são as classes populares, uma vez que os tributos estão incluídos nos preços de tudo o que elas consomem).
O que “eles”, lá em cima, discutem é se o tamanho da casta deve ser maior ou menor. Se continuar como está, os defensores dessa ideia se sentem mais seguros politicamente e não querem que se mexa num jogo em que eles estão ganhando. A ampliação interessa aos que ainda precisam de alguns lances para consolidar sua posição hegemônica no contexto eleitoral – alguns cabos a mais fazem a diferença.
Em nenhum momento se vê uma reflexão séria sobre o sentido dessa tal representação popular. O discurso pode ser até recheado de algumas afirmações nessa linha, mas é pura balela, são frases de efeito, sem nenhum conteúdo.
O avanço no processo político exige que se considere uma outra possibilidade, que não essa, já esgotada, de uma estrutura de poder fundada na fraude eleitoral e que, por ser centralizadora, possibilita a corrupção. O político “despachante”, ou seja, aquele que frequenta os corredores e antessalas do poder executivo, para liberar verbas, para conseguir benefícios para suas bases, é o mesmo que negocia os esquemas fraudulentos que volta e meia são escancarados pelas investigações policiais (mas não acabam nunca, essas “operações” apenas tentam esvaziar o mar com canequinhas).
É preciso pensar em novas formas de exercício do poder.
Uma delas é a democracia participativa (superando a representativa). Alguns ensaios já vem sendo feitos, com bons resultados. É preciso aprofundar essa tese, experimentá-la mais e mais, aperfeiçoá-la – também participativamente. Não se pode manter o atual esquema em que se designam cachorros para tomar conta da lingüiça. É preciso ampliar as discussões a respeito dos problemas coletivos e criar canais de manifestação autêntica das opções da própria coletividade. Sem isso, toda nossa estrutura jurídica e administrativa só evolui na direção da manutenção de privilégios aos já privilegiados.
Outra possibilidade é o esvaziamento do poder de barganha dos “representantes”, ampliando radicalmente o número deles. No mínimo, multiplicar por dez a composição atual. Uma cidade, por exemplo, que tenha 11 vereadores, passaria a ter 110. Qualquer negociação escusa teria que ser feita com muito mais gente, com riscos muito maiores para os delinqüentes. Maior número de setores da sociedade teriam sua voz nesse parlamento ampliado, o que poderia contribuir, em muito, para a legitimidade do poder.
Isso ficaria muito caro, diriam. Não necessariamente. É possível, por exemplo, congelar o orçamento do legislativo, mantendo os níveis atuais. Não haveria remuneração para o exercício da vereança. Os recursos financeiros atuais seriam utilizados para garantir a infraestrutura necessária, diferente da que existe hoje, sem essa de gabinetes e assessores, veículos, franquias de correio e telefone, passagens e diárias.
As forças populares que sustentam o mandato tratariam de viabilizá-lo, cabendo ao eleito o papel de se legitimar como liderança, estreitando contato com suas bases e colocando a militância a serviço da eficácia da representação.
É no meio do povo que deve ficar o tal “gabinete”, não no palácio. São os representados que devem assessorár. Mais, é com eles que devem ser discutidas as posições a serem assumidas no jogo político.
A rigor, esse tipo de representação ampliada seria uma forma e um caminho para se chegar à democracia participativa. Não elimina todos os problemas que ocorrem hoje, como por exemplo, o poder de fogo do empresariado. Não faltaria, com certeza, algum ricaço que se dispusesse a financiar o legislador, em troca de apoio aos interesses de seus negócios. Mas com o poder pessoal do vereador diluído, sua “compra” ficaria menos vantajosa.
É uma ideia. Que venham outras! O que não dá é para suportar, por muito mais tempo, esses caras cuidando de seus próprios interesses e arvorando-se em portavozes dos nossos, em deslavada mentira.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

ÉTICA E ESTÉTICA NAS NOVAS PRÁTICAS DE CIDADANIA

Um fato relevante dos últimos tempos, na nossa área de atuação profissional, é a experiência que vem sendo desenvolvida pelos grupos de psicodrama e teatro espontâneo da América Latina, que têm disponibilizado ativamente seus recursos para, como prática de cidadania, criar um espaço de escuta e reflexão a respeito dos problemas da comunidade.
Esse movimento se dá num contexto em que muitos outros fatos se desenrolam em alucinante velocidade, o que nos obriga a tentar visualiza-lo com uma abrangência que lhes faça jus.
A eleição de Lula no Brasil, a peculiar movimentação da sociedade argentina diante da crise de seu país, a invasão do Iraque, a emergência da Coréia como força nuclear, as sombras escuras que pairam sobre a integridade da ONU e da Comunidade Européia, a expansão e fortalecimento das correntes políticas e religiosas fundamentalistas, as demonstrações de força do chamado “crime organizado” como poder paralelo, estes e vários outros eventos recentes poderiam ser listados como sintomas que apontam para uma significativa reformulação do equilíbrio das forças sociais.
Nossa inserção deve enfrentar, em função disso, novos e urgentes desafios.
Novas práticas de cidadania. Que significa essa expressão?
Gostaria de começar com um questionamento: se não for devidamente conceituado, o termo cidadania pode conter uma armadilha fatal. Com efeito, sua origem remonta à Grécia antiga, quando as cidades-estado começaram a ser organizadas politicamente, quando a participação popular na definição dos destinos da comunidade apresenta os primeiros contornos do modelo que hoje se popularizou com o nome de democracia.
No entanto, é bom lembrar que essa configuração era altamente discriminatória, na medida em que conferia a condição de cidadão apenas ao estamento privilegiado da comunidade, tipicamente o dos proprietários de terras.
Os critérios variavam no tempo e no espaço, até mesmo em função das lutas sociais que foram acontecendo ao longo dos séculos, mas via de regra ficavam de fora do sistema formal de poder os estrangeiros, os escravos e as mulheres.
Essa tendência discriminatória vem-se confirmando através dos séculos e se propaga até os nossos dias. Por exemplo, as teorias do mercado levam em conta apenas os consumidores. Os que não têm capacidade de consumir ficam fora, constituindo a grande massa dos excluídos. Cabe ao estado a tarefa de inseri-los, através de políticas sociais, transformando-os em novos consumidores - aí sim, com direitos e deveres.
Como o estado é sustentado por impostos, os contribuintes (os maiores, de preferência) é que têm o direito de controla-lo, ficando novamente excluídos os que, por não estarem dentro do mercado nada podem custear, o que aprofunda a farsa da democracia exclusivista.
Temos, aliás, uma boa medida do reducionismo das organizações políticas exclusivistas quando lembramos que a vida é algo mais amplo do que o homem e suas relações: ela inclui a totalidade dos seres, em total interdependência, o que exigiria um olhar tão radicalmente inclusivo, que, a rigor, alcançaria o planeta como um todo. Mas isso nem sequer é cogitado.
O termo cidadania, como o empregamos hoje, difere do histórico, na medida em que procura caracterizar a universalidade, a plenitude e a equivalência de direitos e deveres nas relações sócio-politico-economico-culturais entre os homens. Mas mesmo expurgado das contaminações tradicionais, é apenas um dos recortes possíveis, dentro de uma perspectiva inclusivista.
Num outro eixo conceitual, a idéia de cidadania pressupõe que as relações humanas sejam referenciadas, em sua construção, pelo modelo sujeito-sujeito.
Este modelo implica a consciência da mútua determinação, tanto no campo da apropriação do saber quanto na formação das mentalidades, assim como na distribuição do poder.
Assim, toda ação que tenha como objetivo ampliar essa consciência pode ser considerada como promoção da cidadania.
Esse tipo de ação pela cidadania, até por ser uma prática cidadã em si, difere dos movimentos de “conscientização” que vigoraram durante a chamada guerra fria, no século XX, porque estes movimentos tinham um caráter francamente proselitista, buscando ampliar as bases de sustentação para um projeto macro-político de esquerda - cujo bordão era a justiça social através da transformação das relações de produção.
Hoje, embora ainda prevaleça em alguns círculos a postura acima, somos muito mais pretensiosos. Nossa concepção de cidadania se estende à micropolítica, às relações do cotidiano. Tem uma perspectiva pluralista, na medida em que se recusa a estabelecer, de partida, uma pauta hegemônica, apostando na hipótese de que sujeitos livres em ação concertada podem encontrar sempre uma solução para seus problemas. E a liberdade do sujeito está condicionada ao abandono, de parte a parte, da pretensão de impor unilateralmente qualquer tipo de solução, seja aos contemporâneos seja aos pósteros.
Trata-se de um conjunto de valores que devem presidir todos os aspectos da vida e não apenas alguns deles. Poderíamos denomina-los, instrumentalmente, de “ética da cidadania”.
Tomemos, para nossa reflexão, nossa prática com o teatro espontâneo.
A retomada da experiência original de Moreno, de um teatro voltado para a liberação e o desenvolvimento da espontaneidade, teve que prescindir - por absoluta impossibilidade de que fosse o contrário - de uma descrição mais pormenorizada dos procedimentos por ele adotados.
Isso foi bom porque não nos atou a técnicas fechadas, permitindo-nos a apropriação dos princípios e metas por ele sugeridos e, a partir disso, exercer nossa criatividade, elaborando dispositivos que respondessem a esses objetivos.
E os mais diferentes formatos de teatro espontâneo vêm surgindo, mundo afora, nas últimas décadas, a maioria deles nem sequer vinculados à tradição psicodramática.
Suas ênfases variam, desde a prática educativa, quando propõem a reflexão e a ampliação do conhecimento, até o víes terapêutico, quando procuram facilitar frente à vida.
Mas a investigação dos valores subjacentes a essas múltiplas propostas permite identificar entre elas vários pontos em comum: o que se pretende, em geral, com esses teatros, é resgatar a subjetividade, a autonomia, a inclusividade, a abertura para a multiplicidade de sentidos, a co-criação, a construção coletiva. Poderíamos agrupar esses valores sob o nome de “estética da cidadania”.
E aí desembocamos num ponto em que é tal a convergência entre princípios éticos e princípios estéticos que a própria distinção entre o ético e o estético acaba, de certa forma, sendo superada. O ético é o estético e vice-versa.
Se a nossa missão sócio-política se limitasse ao trabalho com grupos (usando como ferramenta teatro espontâneo, psicodrama, sociodrama, axiodrama ou qualquer outro nome que se dê a nossa intervenção) talvez pudéssemos dizer que as coisas são relativamente simples, sem maiores desafios à nossa reflexão além daqueles que já estão postos e sobre os quais já conseguimos alcançar um razoável consenso.
Ocorre porém que nossa inserção social nos responsabiliza por tarefas mais amplas e de outras ordens. Os acontecimentos nos colocam diante de dilemas muito mais complexos, que não comportam soluções simplistas.
Para provocar uma reflexão, gostaria de trazer para vocês uma experiência que estou vivendo no presente momento.
A militância de esquerda vem encontrando, no Brasil, hoje, sucessivas oportunidades de passar da oposição à situação, de exercer parcelas significativas do poder político formal e de, em tese, colocar em prática, através dele, suas propostas. O símbolo maior dessa situação é a conquista da presidência da república por um líder operário, que tem uma história de lutas políticas de oposição a governos militares e neo-liberais.
Nesse contexto, fui chamado a colaborar numa instituição pública de saúde, especificamente para cuidar das relações entre os cuidadores, dentro de um projeto gestional que se assenta num tripé: a humanização do atendimento á população, a estruturação de equipes multi-profissionais e a gestão participativa.
Essa atuação me permitiu um contato mais íntimo com os trabalhadores de ponta e com os problemas por eles enfrentados no exercício de suas funções. Mas não apenas esses trabalhadores necessitavam de um espaço de escuta: os próprios trabalhadores gestores mostraram essa carência.
Tudo isso me ensejava informações e avaliações importantes para fundamentar decisões e inspirar iniciativas quanto aos processos de trabalho e de gerenciamento, em função da proteção à saúde dos cuidadores. Além disso, alguns espaços precisavam ser preenchidos, não apenas para ouvir os seus atores, mas também para mobiliza-los, levando até eles o projeto institucional, com suas ofertas e propostas de ação.
Na medida em que me fui envolvendo ativamente nessas questões, meu papel foi-se definindo, gradativamente, como “apoiador de gestão” (nome oficial), mais do que mero coordenador de encontros de cuidadores.
Com um dos olhos, esse apoiador enxerga as pessoas concretas, com todas as suas aflições e limitações, procurando contribuir para o seu desenvolvimento e integração. O outro olho se volta para a instituição, da qual é representante. Tem que zelar por sua inserção dentro dos objetivos políticos de um governo que tem sua responsabilidade social claramente delineada, tratando de ajudar a implementar seus projetos transformadores.
Seu papel consiste, na prática, em ajudar a tecer a rede de contratações horizontais que, em última instância, é a que faz o hospital funcionar. A ajuda se concretiza no incentivo, na facilitação das negociações, no desfazer tensões paralisantes, no esforço de compatilibização com o todo.
Significa, por outro lado, instrumentalizar a gerência para gerir o conflito, transformando-o em matéria prima para a própria gestão.
Por tratar-se de um hospital governamental , cuja clientela é majoritariamente pobre, o modelo assistencial até então vigente era altamente saturado, ideologicamente, por uma perspectiva de classe dominante.
O modelo tradicional de gestão hospitalar, fundado na hegemonia médica, favorece relações opressoras. Ao lado da condução autoritária, ele pressupõe que as ações dos demais atores - os agentes de saúde não-médicos - subordinam-se à necessidade de criar as condições para a atuação dos agentes médicos, a cujos interesses devem adequar-se também os usuários.
Pelo menos três ordens de conflitos se evidenciam nesse modelo, uma entre distintas categorias profissionais, outra entre prestadores de serviços e usuários e, mais uma, entre gestores e prestadores de serviços.
O projeto político de mudar essa situação passa pela necessidade de instituir dispositivos de escuta, um esquema que inclua possibilidades de manifestação e reflexão, tanto dos trabalhadores quanto dos pacientes e familiares.
Ou seja, para que todos esses atores se transformem em sujeitos, no processo de mudanças que está sendo desencadeado, é necessário que eles possam falar, não apenas das relações profissionais, especificamente, mas de sua presença como pessoas dentro da situação vivida e do próprio processo transformador em curso.
Ocorre porém que a escuta institucional é, pela sua própria natureza, ambivalente. Apesar de algumas importantes semelhanças metodológicas, ela não equivale, por várias razões, à escuta terapêutica.
Em primeiro lugar, porque é difícil garantir à pessoa que escuta uma posição de neutralidade, por estar ela comprometida com um projeto que pode não corresponder ao da pessoa que fala.
Depois, porque a permissividade da situação de escuta tem que conviver com fantasmas que nem sempre são exatamente fantasmas, mas ameaças reais e concretas, uma vez que aquele que escuta faz parte do sistema de poder. Não necessariamente como mero “espião”, mas até mesmo, no bom sentido, como alguém que, de posse de uma informação, tem que tomar alguma providência gerencial. Sua escuta e seu discurso estão definidos pelo projeto político que ele agencia, o que facilmente se desdobra numa crise de confiabilidade.
Mais ainda, aquele que escuta está metido numa rede de micropolíticas que incluem jogos de poder dentro do próprio poder. As famosas e tradicionais “intrigas da corte”.
O desafio que se coloca é como conciliar a condição de “ser governo” com o ofício da escuta, sem transformar a relação num espaço reivindicatório, de proselitismo ou de bajulação. Ou ainda, sem fazer voltar-se a confidência contra aquele que a confidenciou.
Ora, esse é apenas um caso particular do dilema que se coloca para os governos de esquerda, comprometidos com teses revolucionárias defendidas ao longo de décadas, quando têm que transforma-las em realidade. É sua tarefa fazer caminhar na direção da utopia, sabendo que, como a linha do horizonte, cada passo que dá em sua direção implica um deslocamento equivalente que acaba mantendo igual a distância entre a realidade e o sonho.
A passagem da realidade inaceitável para o sonho possível não se dá num passe de mágica.
Além disso, não se democratizam as relações por decreto.
A horizontalidade e a participação nos processos decisórios, quando não traduzem uma conquista coletiva, mas sim um ato de generosidade daquele que, dentro da estrutura vigente, tem o poder de conceder o partilhamento do poder, não representam e não possibilitam avanços sociais definitivos.
Por outro lado, não se transformam estruturas opressoras em sistemas justos, sem contrariar interesses - até mesmo dos oprimidos que já se acostumaram com a opressão e encontraram jeitos de sobreviver, quando não de obter proveito pessoal num contexto adverso, transmutando-se em micro-opressores. Se todos têm o direito de decidir, em conjunto, existe inclusive a possibilidade de as forças conservadoras se valerem dos próprios dispositivos transformadores para garantirem sua posição no sistema.
Na construção de uma ética e uma estética da cidadania, o desafio é estender as propostas do teatro espontâneo, marcadas pela horizontalidade da escuta, para integrá-las numa relação de verticalidade inerente ao exercício do poder.
Porque é preciso que o governante assuma eficientemente suas responsabilidades de gestão, desencadeie processos de transformação social e ao mesmo tempo garanta o objetivo maior que é o de universalizar os princípios da cidadania. E para isso ele precisa saber ouvir. Não é um ouvir qualquer, apenas generoso e condescendente. A escuta qualificada busca ir além dos significantes verbais e imediatos, através de uma disponibilidade ao mesmo tempo ativa e seletivamente construtiva.
Moreno propôs que, na consideração dos papéis, se desse atenção à complementaridade e à articulação entre os diversos contra-papéis. O caráter relativamente óbvio dessa postulação nos impede muitas vezes de identificar o seu alcance tanto teórico quanto operacional.
Os papéis são distribuídos, qualquer que seja o contexto, em função de “projetos dramáticos”, ou seja, de estratégias coletivas para se atingir objetivos comuns. É um processo bastante dinâmico e experimental, na medida em que os sujeitos envolvidos vão avaliando e reformulando, passo a passo, as atribuições, mesmo no caso de terem, aparentemente, perdido de vista os objetivos ou cristalizado suas inter-complementaridades.
Como corolário, os papéis de liderança não constituem algo externo a esse processo, cabendo-lhes a função de facilitar a definição dos objetivos, a formulação das estratégias e a concretização das ações.
No plano institucional, quando se pretende superar as formas autocráticas de gestão, numa perspectiva de cidadania plena, há que radicalizar essa relação entre sujeitos.
A escuta não pode ser nem pontual nem unilateral (apenas uma das partes escuta ou se escuta apenas uma das partes), devendo antes constituir-se num estado de espírito permanente, multilateral.
O diálogo pressupõe, de forma recursiva, a expressão do próprio desejo e a pergunta sobre o desejo do outro.
A escuta não se restringe, por isso mesmo, aos aspectos meramente profissionais, porque o que está em jogo não é só a eficiência na prestação dos serviços ou a qualidade extrínseca das tarefas executadas. São as pessoas que contam e pessoas são mais do que sua crosta profissional.
É bom lembrar que, numa perspectiva não-cidadã, estimula-se que as relações sejam o mais possível estritamente profissionais, ocultando-se ao máximo as pessoas enquanto tais.
Embora a pretensão seja, nesse caso, de descontaminar o projeto-trabalho de interferências indevidas de projetos de outra ordem (ideologicamente rotuladas de subjetivas, como pecha negativa), o resultado costuma ser pobre, uma vez que apenas fechar os olhos a essas interferências não garante que elas deixem de existir. Com o inconveniente maior de que, ao desprezar dados relevantes, as soluções acabam sendo equivocadas.
A prática da cidadania caracteriza-se pela transparência. Nas instituições mais complexas, as decisões são tomadas em diversos âmbitos e na maioria das vezes afetam toda a coletividade, sem que se possa consulta-la a cada passo, em cada circunstância.
É comum que se adotem, em função disso, estratégias maquiavélicas de legitimação, que são a antítese das relações sujeito-sujeito. É isso que a transparência, na perspectiva cidadã, procura evitar.
E é essa transparência que se impõe no momento da escuta, quando quem se propõe a escutar está francamente envolvido num projeto político-institucional, inclusive detendo alguma parcela de poder.
As cartas devem ser colocadas sobre a mesa, sem rodeios ou subterfúgios, com um posicionamento claro e uma explicitação da proposta de parceria na investigação dos problemas comuns e no delineamento de estratégias transformadoras.
A rigor, mesmo nas situações caracteristicamente terapêuticas, essa é uma das mais importantes exigências, quando se trata de evitar o fenômeno da “rematrização ideológica”, ou seja, da transformação da terapia num instrumento de proselitismo de classe, de mera substituição de valores.
As contradições são inerentes às práticas da cidadania, na medida em que elas não se descolam da realidade social, plena de contradições, da qual fazem parte e que pretendem transformar.
Como em qualquer outra situação, o desafio que temos é o de lidar com essas contradições, sem negá-las e sem permitirmos que elas nos paralisem.

domingo, 20 de abril de 2008

CAMPANHAS: FINANCIAMENTO PÚBLICO?

Sem essa! Conta outra!
É um velho e conhecido golpe. Os caras metem a mão no nosso dinheiro, extorquido – esse é o termo correto! – sob a forma de impostos e dissipado irresponsavelmente pelos ocupantes do poder. Pegam essa grana pra se perpetuarem como guardiães do cofre.
O pior de tudo é que o fazem em nome da moralidade eleitoral. Que moralidade, cara pálida! Ou alguém é ingênuo de pensar que com isso os custos vão se restringir ao saque dos cofres públicos? O caixa-dois que já corre solto com as regras atuais, vai se firmar ainda mais. O dinheiro sujo só não vai ficar mais sujo porque é impossível, só vai mudar o mau odor.
Paradoxalmente, até aqueles polìticos aparentemente mais confiáveis vem embarcando nessa, repetindo o bordão.
A solução é muito mais simples, embora exija um certo grau de ousadia, para quebrar mitos (verdades assumidas, adotadas, não contestadas). Os gastos eleitorais devem ser totalmente liberados, extinguindo-se qualquer forma de controle contábil oficial. Cada candidato, cada partido, faz como quiser. Quem quiser dar dinheiro, não precisa esconder. As empresas, se quiserem, podem até contabilizar as doações como custo operacional. Idem, os sindicatos e quaisquer outros entes jurídicos. As pessoas físicas, embora não tenham essa chance de considerar essa despesa como dedução para o imposto de renda, também não são obrigadas a oficializar seus investimentos eleitorais.
O controle social viria de outra forma.
O grande vilão das campanhas é o marketing político que emprega os meios de comunicação de massa. Apoiado por uma equipe de especialistas que decide até a cor da gravata que o vai usar na televisão, o candidato fica pasteurizado em suas mensagens, dizendo não aquilo que verdadeiramente pensa, mas sim aquilo que as pesquisas dizem que a massa quer ver e ouvir. A verdadeira batalha eleitoral é um torneio entre publicitários – o candidato tem que ter charme, desenvoltura para se apresentar na mídia, ser bom de debate, encantar a platéia, e integrar a equipe. Difícil “vender” um candidato sem apelo pessoal, não importando quão boas sejam suas propostas.
As restrições aos gastos abusivos seriam feitas através da proibição do uso de meios de comunicação de massa: rádio, televisão, publicidade em espaços abertos.
Isso forçaria os candidatos a se aproximarem fisicamente de seus eleitores. Os eventos para divulgação das candidaturas e para o convencimento de eleitores só poderiam acontecer em espaços fechados. Dentro deles, faixas e cartazes à vontade. Da porta para fora, nada. Material impresso, só aquele que possa ser entregue de mão em mão ou afixados em espaços fechados.
Outra forma de controlar as despesas seria o tipo de brindes permitidos. Só seriam admitidos aqueles que suprissem necessidades básicas: alimentação, vestuário, material escolar, transporte, práticas esportivas, saúde, ambiente. Não seriam permitidos “shows”, “showmícios” e equivalentes. Pequenas ajudas hoje não proibidas continuariam acontecendo: pagar uma conta de luz, transferir um titulo eleitoral, pagar uma viagem etc.. Inevitável.
O fornecimento de bens de primeira necessidade, embora possa à primeira vista ser uma forma de compra de votos, tem a vantagem de redirecionar os custos, coibindo o desperdício (os programas eleitorais “gratuitos” têm um custo de produção altíssimo, custam aos cofres públicos compensações às emissoras por perdas de faturamento deles decorrentes – ou seja, os idiotas dos cidadãos estão pagando indiretamente)e contribuindo para diminuir a fome.
Se apenas alguns candidatos oferecem essas coisas, eles poderiam ganhar votos enchendo barriga. Mas se a oportunidade é aberta a todos, esse risco diminui. Além do mais, os candidatos com menor poder aquisitivo estariam em desvantagem por não poderem produzir a comunicação de massa, de qualquer maneira. Com o novo esquema, todos vão ter que chegar mais perto dos eleitores, o que em tese melhora a competitividade dos candidatos com maior apelo ideológico. E o volume de recursos que poderia ser aplicado em melhoria direta das condições de vida da população é incalculável. De toda maneira, compensaria pelo menos em parte os prejuízos causados pelos desmandos do poder constituído. Desmandos que vão continuar existindo, independente da forma como são escolhidos os dirigentes. Ainda que, em tese pelo menos, só a não necessidade de caixa-dois já apontaria um caminho mais ético, o que em si é um ganho.
Seriam vedados brindes supérfluos, tipo bottons, bandeirolas etc..
Como tudo o que seria proibido são coisas concretas, fica mais fácil fiscalizar. Os candidatos seriam responsabilizados, sempre, pelas irregularidades, ainda que cometidas pelos seus correligionários. Se houver suspeita de que o adversário “plantou” a irregularidade, o prejudicado pode provar isso ou até mesmo pedir investigação policial.
Todas essas propostas têm um referencial: acabar com a hipocrisia. O que quer que se faça, precisa ser à luz do dia.

sábado, 22 de março de 2008

AUMENTAR BASTANTE O NÚMERO DE PARLAMENTARES

Um dos estímulos à corrupção é o excesso de poder concentrado num cargo eletivo. Com um número reduzido de "representantes do povo", os legisladores, em todos os níveis, ficam com uma carga de poder muito grande.
A representatividade fica comprometida, também, porque nem todas as correntes de pensamento conseguem espaço para se manifestarem e para influirem nas decisões.
A idéia é aumentar bastante o número de integrantes do legislativo. É preciso pensar um critério, mas de qualquer forma tem que ser uma espécie de grande assembléia do povo, com redefinição dos poderes - aumentando, em alguns aspectos, o direito de participar das decisões relevantes da gestão pública.
Encareceria o processo? Talvez. Mas é possível pensar em congelar os gastos atuais, de tal forma que a nova estrutura tenha o mesmo impacto no orçamento público. Por exemplo, se se dobra o número de parlamentares e cada parlamentar tem, hoje, dois assessores, a nova composição atribuirá a cada parlamentar apenas um assessor. Se cada um tem um gabinete, no próximo arranjo cada gabinete comportará dois parlamentares, com o mesmo espaço físico e com a mesma infra-estrutura.
Dentro dessa idéia, o exercício do mandato somente cobrará eficiência se o parlamentar tiver mais contato com suas bases, que é onde encontrará os subsidios que hoje ele busca através da assessoria paga. Isso quando o assessor não é apenas um fantasma, bem pago. É a militância autêntica que ser estimulada.
Essa idéia vai na contra-mão do propalado pela grande imprensa, que analisa as coisas sob a ótica da estrutura de poder já estabelecida. Não tem olhos - ou tem mas não gosta de ver - para uma forma popular de controle da sociedade.